Você tem visão panorâmica?


Revista Época Negócios
07/08/2012 - por ARIANE ABDALLAH

Comandante que se preze tem de supervisionar tudo, prever cenários, antever riscos e ainda afastar os urubus de plantão. A Vida de piloto de helicóptero não é nada fácil

Duarte pronto para decolar: um bom planejamento no chão garante 90% do sucesso no ar (Foto: Claus Lehmann)
Rodrigo Duarte é piloto de helicóptero, 12 anos de manche. Maneja uma aeronave de US$ 6 milhões, pertencente a um alto executivo paulistano, no espaço aéreo mais congestionado do país: em horário de pico, costumam ziguezaguear nos “céus” de São Paulo cerca de 80 helicópteros simultaneamente. Nesse tráfego intenso, o comandante não pode errar. Não pode dizer que não viu, não sabia, não esperava... Até porque, dependendo do caso, nem terá tempo de dizer. “Minha profissão é a mais segura do mundo, desde que eu não tire os pés do chão sem um bom planejamento”, diz Duarte. E desde que ele seja capaz de calcular riscos, prever cenários, tomar decisões rápidas e mudar a rota quando necessário. A visão panorâmica, sua maior ferramenta de trabalho, depende basicamente de prestar atenção a todas as variáveis, ao mesmo tempo. “Fico com um olho no computador, outro lá fora, e o ouvido no rádio.” Entra na lista de responsabilidades administrar o copiloto e os sete passageiros que cabem na aeronave.
Como tudo o que é rotina, a tendência do ofício de Duarte é levá-lo à zona de conforto e transformá-lo em um piloto automático. Só que ele sabe que uma vacilada no ar geralmente é fatal. Por isso, não dá para ficar pensando no que vai querer para o jantar ou se perder na “beleza do Parque do Ibirapuera, todo arborizado, próximo à avenida Paulista, cinza e cheia de prédios, que, juntos, formam um desenho que só se vê lá de cima”. Do alto, ele descobriu uma nova cidade, em que a caótica arquitetura forma figuras com alguma harmonia. Mas desde o tempo de taxista aéreo, quando fazia voos panorâmicos também como passeio, desenvolveu a habilidade de olhar a paisagem sem perder a concentração. “Você não pode confiar cegamente no helicóptero. Precisa estar sempre pronto para qualquer adversidade.”
O importante para ele é ver o todo, e não mergulhar nos detalhes. “Vejo que há pessoas lá embaixo, mas não sei que roupas estão usando. Vejo lagos, mas não consigo identificar patos nadando neles.” A 500 pés do chão, não seria possível enxergar mais que isso, mesmo que ele quisesse. Esta é a altitude permitida para voos em São Paulo. Nem tão alto que atravesse as nuvens (o que dificulta a visão); nem tão baixo que corra o risco de colidir com alguma construção.
Ele mantém um olho no computador, outro lá fora e o ouvido no rádio. Ainda tem
de administrar o copiloto e os sete passageiros da aeronave 
O fato de os pilotos terem sua habilidade avaliada todo ano, independentemente do tempo de experiência, ajuda a manter o foco afiado. Cada helicóptero exige um exame específico, o que faz com que Duarte passe por sete diferentes, teóricos e práticos, já que pode pilotar sete modelos de aeronaves. As principais noções exigidas nas provas são revisadas antes de cada decolagem, como parte do “planejamento de voo”. Essa etapa ocupa cerca de uma hora e pode ser feita um dia antes da viagem. É o momento de checar o clima nos pontos de origem e de destino e a visibilidade, que, em São Paulo, deve ser de no mínimo 1,5 mil metros de distância durante o dia; e 3 mil à noite. A visão de cima é, na prática, uma visão à frente. “Tenho de enxergar os próximos pontos de referência e estar a uma distância que me dê tempo de tomar uma atitude de emergência, se for preciso.”
No planejamento também entra o cálculo de peso da aeronave. Para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, um de seus trajetos mais corriqueiros, Duarte calcula o peso de seu helicóptero (2.060 kg) somado ao de seu corpo (78 kg) e ao de seu copiloto (85 kg). Também entra na conta o combustível, que inclui a quantidade exata para o percurso e uma reserva para mais 30 minutos de voo. Da capital paulista à carioca o cálculo fica em 400 kg. O total, no helicóptero pilotado por Duarte, deve ser sempre 3 mil kg. Por isso, o peso reservado para os outros sete passageiros, incluindo as respectivas bagagens, é 337 kg. Isso, se o clima estiver seco, a temperatura por volta dos 15ºC e a decolagem for a partir do nível do mar. Qualquer mudança nos fatores, nesse caso, altera o produto.
Duarte aprendeu a tratar imprevistos como previstos porque, uma vez no ar, fica difícil consertar um erro de cálculo. É preciso contar também com variáveis externas, como a necessidade de esperar a passagem de outra aeronave antes de continuar o caminho ou ter de fazer um pouso forçado por causa de pane no sistema. Para situações assim é que serve a reserva de combustível. Com ela, o piloto ganha tempo para fazer meia-volta ou encontrar um lugarzinho para pousar de improviso. Se estiver em São Paulo e der tempo, vale localizar um dos 193 heliportos da cidade. Colocar combustível a mais “só para garantir”, como se faz em uma viagem de carro, não vale para viagens de helicóptero. Significa peso extra. “Não existe encher o tanque e sair voando. É tudo baseado em cálculos.”
Voo em São Paulo: nem tão alto que atravesse as nuvens nem tão baixo que corra o risco de colidir com prédios  (Foto: Gettyimages)
Os urubus de plantãoApesar do fluxo intenso de helicópteros, é raro que se confrontem. Os pilotos sabem-se próximos uns dos outros graças à frequência de rádio à qual todos devem estar conectados. Avisar aos colegas onde está, para onde vai e que caminho pretende fazer é uma das primeiras lições do curso de formação. Clareza e objetividade são as orientações básicas na hora de se comunicar. Em algumas regiões, como a cidade de São Paulo, não há uma central para mediar as conversas – com exceção das áreas próximas a aeroportos, onde aviões decolam e pousam a todo momento. Daí a importância de eles ouvirem uns aos outros e falarem apenas o necessário. Não dá para ficar batendo papo pelo rádio.
Tanta prática – Duarte tem 2,5 mil horas de voo – faz com que ele se perca mais em Terra do que no céu. Quando está no carro e não sabe que direção seguir, em São Paulo, ele tenta reproduzir em sua mente a visão global que tem da cidade. Em seguida, procura ao redor as referências que o guiam no ar, como estádios, viadutos ou estações de metrô. Um GPS bem particular, diga-se.
A experiência de mais de uma década voando ensinou Duarte a não se deixar levar por comandos cerebrais traiçoeiros, como “acho que dá para ir” e “vou tentar”. “Não tem essa de tentar. Você só decola se estiver extremamente seguro.” Mas no começo da carreira, ele admite que, vez ou outra, cedia à ilusão de poder. “Você pensa: ‘Se posso voar, posso fazer qualquer coisa’.” Manobras radicais e cálculos imprecisos são os principais erros cometidos por pilotos iniciantes e com excesso de confiança.
Pare ele, entre as variáveis inusitadas estão os urubus que dividem o espaço aéreo com os pilotos. São a pior ameaça. Uma dessas aves já bateu em sua janela lateral. Existem casos em que o pássaro não só invade o helicóptero como faz estragos no piloto. “Já soube de um que teve o couro cabeludo arrancado.” No limite, podem derrubar a aeronave. Existem também os passageiros-urubus, aqueles que gostam de urubuzar o piloto. Fazem perguntas, ou insistem para que o comandante tome atitudes não recomendadas. Como um líder de equipe, o piloto deve mostrar firmeza para sustentar escolhas que nem sempre agradam aos demais passageiros. Certa vez, Duarte teve de encarar o ego de um deputado. Ele seria padrinho de um casamento, em Santos, mas, no meio do caminho, o tempo virou, e o piloto decidiu dar meia-volta. “Como assim? Todos estão me esperando. Nós vamos!”, disse o deputado. “Falei: ‘Sinto muito, mas estamos voltando’.” Nessas horas, é melhor que ele queira me matar, mas não me mate, do que eu matar todos nós.” Sorte do político que o comandante tem uma visão panorâmica.
Como ficar ligado em  tudo ao mesmo tempo (Foto: Ilustrações: Paola Lopes)

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