Nem a burocracia aguenta a burocracia

Fonte: Revista Exame - 20/02/2009
Regras mal desenhadas, excesso de controles, falta de motivação e medo - sim, medo de ser envolvido em suspeitas de corrupção. É assim o dia a dia dos funcionários públicos responsáveis por tocar a máquina estatal brasileira

Três meses após assumir a direção do Instituto de Matemática e Computação da Universidade Estadual de Campinas, o físico Jayme Vaz Júnior decidiu instalar um elevador no prédio da faculdade. Na época, em fevereiro de 2007, as escadarias do edifício de quatro andares causavam enorme constrangimento a uma estudante de pós-graduação que se locomovia em cadeira de rodas e precisava esperar pela ajuda de colegas. Professores idosos ou com problemas de saúde também reclamavam das escadarias. Desde que Vaz decidiu resolver o problema até o início da instalação do elevador, há alguns dias, três anos se passaram. Todo esse tempo foi consumido no preparo de quatro - sim, quatro - licitações para que a obra fosse contratada. Se tudo der certo, o elevador começa a funcionar em novembro, quase quatro anos após a decisão de instalá-lo. A aluna da cadeira de rodas não usufruirá do equipamento. "Ela desistiu em seis meses alegando que o curso era pesado. Mas acredito que a dificuldade de locomoção colaborou para a desistência", diz Vaz.

Não foi a falta de dinheiro, mas os obstáculos para gastá-lo, que transformou a licitação do elevador da Unicamp em uma novela. A morosidade característica do serviço público brasileiro é resultado de uma mi ríade de formalidades criadas com o objetivo - nobre e imprescindível, é verdade - de evitar o mau uso do dinheiro do contribuinte. O lado perverso desse excesso de controles é uma burocracia que, além de torturar empresas e cidadãos, cria embaraços para os próprios gestores públicos. Obras e serviços se arrastam por anos antes de começar efetivamente a ser executados. Mesmo depois de iniciados, são frequentemente interrompidos sob suspeita de falcatruas, por ações movidas por quem discorda do projeto ou mesmo por concorrentes vencidos nas licitações públicas - a Justiça é atulhada por pedidos desse tipo.

O enrosco chega ao ponto de enervar o burocrata mais poderoso do país. Nos últimos meses, em várias ocasiões o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou publicamente seu inconformismo com a lentidão de obras questionadas por órgãos como o Ministério Público Federal, o Ibama e o Tribunal de Contas da União. Num gesto extremo, há um mês, Lula usou o poder do cargo para liberar o repasse de verbas e autorizar a retomada de quatro grandes obras da Petrobras que haviam sido brecadas pelo TCU sob suspeita de irregularidades. Trata-se, obviamente, da solução errada - o TCU tem a obrigação de cuidar para que abusos sejam barrados -, mas o episódio serviu para trazer à luz o imbróglio que temos na administração pública. Talvez nenhum outro país tenha tantas regras e controles sobre a gestão estatal. Nossos administradores são obrigados a preencher toneladas de papel a cada decisão, por mais corriqueira que seja. No entanto, o que não faltam são evidências de que a corrupção é endêmica. No ranking da ONG Transparência Internacional, fomos descritos como o 75o país mais corrupto do mundo. Nosso sistema nos deixa no pior dos mundos - por um lado, a infinidade de controles não impede que os corruptos nos roubem à luz do dia; por outro, não permite que os bons gestores façam seu trabalho com um mínimo de eficiência. Assim fica difícil.

No dia a dia do setor público, o exagero de exigências para cumprir regras muitas vezes arcaicas atravanca o trabalho dos mais diversos órgãos. A quantidade de papel produzida pela concorrência para a construção de um hospital na cidade capixaba de Serra, vizinha a Vitória, dá ideia do grau de formalismo da administração pública brasileira. Cada uma das quatro construtoras concorrentes apresentou entre 500 e 1 000 páginas só de documentos de habilitação, ou seja, papéis para provar que não devem nada ao Fisco, que não estão à beira da falência e que possuem capacidade técnica para realizar o trabalho. Anselmo Tozi, secretário de Saúde do Espírito Santo, resume bem a situação: "Passamos mais tempo lidando com a burocracia de licitações e concursos públicos do que planejando, definindo metas e medindo o resultado do serviço prestado à população". Apenas a concorrência para a execução da obra do hospital de Serra levou quase um ano. Se o governo tivesse de licitar também o projeto - doado pela siderúrgica Arcelor Mittal -, a construção, iniciada em setembro, ainda estaria longe de começar.



"AS REGRAS DO SERVIÇO PÚBLICO brasileiro tentam matar a figura do administrador, reduzindo ao mínimo seu espaço de análise e intervenção", afirma Carlos Ari Sundfeld, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas. Ocorre que não é possível prever todas as situações. No início do ano passado, um dos imprevistos mais estressantes enfrentados por Luciano Vasquez, presidente do Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco, incluiu a paralisação por dois meses da linha de produção de um dos medicamentos do coquetel anti-Aids, distribuído pelo Ministério da Saúde. A fornecedora do princípio ativo do remédio fez apenas uma das seis entregas programadas para o ano. Logo que a entrega atrasou, o laboratório poderia romper o contrato e acionar a segunda colocada na licitação. Para isso há um rito fixado na lei. O laboratório teria de abrir um processo administrativo e dar cinco dias para o fornecedor se justificar. Para fechar com a segunda empresa classificada, seria preciso analisar a qualidade de uma amostra do produto, o que consumiria mais duas semanas. "Como ainda havia uma promessa de entrega, preferi esperar, pois temia perder muito tempo com o cancelamento do contrato", diz Vasquez. Com 45 dias de atraso, ele decidiu procurar a segunda classificada na licitação, como manda a lei. Mas não teve sucesso: a empresa não manteve o preço ofertado na licitação. A saída foi apelar à terceira classificada, que aceitou fornecer o produto. Em outros países é comum o Estado ter uma lista de empresas previamente aprovadas, com as quais tem uma relação de confiança que dificilmente é rompida. Por aqui, a lei obriga que as licitações se repitam anualmente e que vença a empresa com o menor preço, mesmo que seja uma novata. "Tenho de comprar material estratégico do mesmo jeito que compro material de escritório, considerando só preço, e não outros elementos, como confiança", diz Vasquez.

Além do excesso de controles, processos mal desenhados tiram velocidade e qualidade da burocracia brasileira. Um caso que desafia a lógica é a sequência de passos das contratações de serviços como obras de construção civil. É preciso analisar a papelada de todas as empresas concorrentes - calhamaços que não raro chegam a milhares de páginas - para só então ver o preço que cada uma propõe. Uma saída apontada por especialistas é a inversão de fases. As empresas seriam inicialmente classificadas em ordem crescente de preços. A análise de documentos começaria pela que ofertasse o menor preço e, caso estivesse tudo certo, o processo pararia por aí, sem que a papelada das outras precisasse ser checada. A alteração também ajudaria a reduzir o tempo perdido com recursos administrativos e judiciais entre concorrentes. Essas brigas ocorrem na primeira fase do processo, quando as empresas recebem a documentação umas das outras e procuram falhas que eliminem rivais. No caso do Novo Hospital Dório Silva, no Espírito Santo, a briga somou 11 ações administrativas e judiciais. Ao fim, apenas dois recursos - mais tarde indeferidos - foram contra a vencedora. Os especialistas ouvidos por EXAME foram unânimes em afirmar que a mudança na ordem da licitação não prejudicaria a transparência. Apesar disso, o projeto de lei que propõe a mudança está parado no Congresso desde 2007.

A tensão entre instrumentos de controle e agilidade sempre será uma questão delicada na área pública. Estados e empresas não podem ser administrados da mesma forma porque possuem natureza diferente. O dinheiro de uma empresa é gasto e vigiado pelos acionistas. Já o dinheiro do Estado, pertencente a todos os contribuintes, tem de ser usado para o bem comum. Na impossibilidade de os contribuintes fiscalizarem o destino dos impostos, órgãos como tribunais de contas são vitais. "O que se espera é que a atuação dos fiscais seja mais eficiente", afirma Mauricio Endo, sócio da KPMG e especialista em parcerias público-privadas. O Brasil se perde em um legalismo extremado - que torna mais importante seguir as regras do que gastar bem o dinheiro. Na Inglaterra, o National Audit Officce, equivalente ao Tribunal de Contas da União, busca não só evitar desvios mas também avaliar a qualidade dos gastos. Afinal, mais relevante do que saber se os relatórios são preenchidos de forma correta é ter certeza de que os professores estão conseguindo ensinar as crianças.

No Brasil, a possibilidade de ter problemas com órgãos de controle provoca medo e, muitas vezes, desestimula o gestor público a decidir pelo que considera mais eficiente. No caso do elevador da Unicamp, a chance de ter a primeira licitação contestada pelo Tribunal de Contas estadual provocou a realização de outros três processos licitatórios. Só na quarta tentativa, seis meses após a primeira licitação, o negócio foi fechado. A economia em relação ao primeiro orçamento foi de 76 000 reais. Valeu a pena? "Não sei quantificar o gasto para fazer as outras três licitações nem os custos provocados pelo atraso das outras obras da universidade, que estavam na fila para ser licitadas. Também não sei quanto custa a autoestima de pessoas como a aluna cadeirante", diz Vaz. "Por outro lado, eu não poderia correr o risco de ter minhas contas reprovadas pelo TCE. Não pretendo carregar uma mancha dessas em meu currículo."

Ao fim, tudo se resume à ação de seres humanos, que precisam ser não apenas cobrados mas também motivados, desafiados e reconhecidos. Uma sugestão para gestores públicos e legisladores brasileiros é a reflexão feita pelo austríaco Sigmund Freud, pai da psicanálise e profundo conhecedor da mente humana: "O excesso de decretos e de interditos prejudica a autoridade da lei: onde existem poucas proibições, estas são obedecidas; onde a cada passo se tropeça em coisas proibidas, sente-se rapidamente a tentação de as infringir".

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