A moral e a crise

Deu pane no sistema de valores e princípios construído nos '30 anos de ouro do capitalismo'

Luiz Carlos Bresser-Pereira* - O Estado de S.Paulo

- A crise que hoje enfrenta o capitalismo é econômica, mas suas causas são também políticas e morais. A causa imediata foi a quebra de bancos americanos devido à inadimplência das famílias em relação a dívidas hipotecárias que, em um mercado financeiro cada vez mais desregulado, puderam crescer sem limites porque os bancos se valiam de "inovações financeiras" que lhes permitiam empacotar os respectivos títulos de tal maneira que os novos pacotes pareciam, aos novos credores a quem eram repassados, mais seguros do que os títulos originais. Quando a fraude foi descoberta e os bancos quebraram, a confiança das famílias e empresas, que já estava profundamente abalada entrou em colapso. Elas passaram a se proteger adiando todo tipo de consumo e de investimento, a demanda agregada sofreu uma queda vertical e a crise, que era inicialmente apenas bancária, se transformou em crise econômica.


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Essa explicação é razoável, mas, dado que no seu centro está a questão da confiança, pergunto: será que a confiança foi perdida por motivos meramente econômicos - pela dinâmica do ciclo econômico, pela natureza intrinsecamente instável do capitalismo - ou na base da crise está uma questão política e moral? É verdade que o sistema econômico capitalista é instável, mas desenvolvemos durante todo o século 20 uma série de instituições que, todos esperavam, fossem capazes de reduzir substancialmente a gravidade das crises. E, de fato, no pós-guerra, nos "30 anos gloriosos do capitalismo" (1945-1975) - tempos do novo Estado social e da macroeconomia keynesiana - as crises perderam frequência e intensidade, as taxas de crescimento econômico foram elevadas e a desigualdade econômica diminuiu.

Entretanto, nos últimos 30 anos - os anos da hegemonia neoliberal e da criação de riqueza fictícia - as taxas de crescimento baixaram, a renda voltou a se concentrar nas mãos dos 2% mais ricos da população e a instabilidade financeira aumentou em toda parte, culminando com a crise global de 2008 - uma crise infinitamente mais grave do que a modesta desaceleração econômica combinada com inflação que assinalou o fim dos 30 anos gloriosos. Ora, embora se confunda o neoliberalismo com o liberalismo (uma grande e necessária ideologia) e com o conservadorismo (uma atitude política respeitável), essa ideologia não é nem liberal nem conservadora, mas caracterizada por um individualismo feroz e imoral. Enquanto o liberalismo foi originalmente a ideologia de uma classe média burguesa contra uma oligarquia de senhores de terras e militares, e contra um Estado autocrático, o neoliberalismo, que se tornou dominante no último quartel do século 20, é uma ideologia dos ricos contra os pobres e os trabalhadores, contra um Estado democrático e social. Enquanto os liberais e os conservadores autênticos são também "republicanos" (como também o são os socialistas e os ambientalistas), ou seja, acreditam no interesse público ou no bem comum e afirmam a necessidade de virtudes cívicas para que o mesmo seja garantido, os neoliberais negam a ideia de interesse público, adotam um individualismo que tudo justifica, transformam a tese da mão invisível em uma caricatura e estimulam cada um a defender apenas seus interesses, porque os interesses coletivos serão garantidos pelo mercado e pela lei. Esta, por sua vez, deve tudo liberalizar. E qual o novo papel do Estado? Em vez de ser identificado à própria lei, é apenas a organização de burocratas que deveria garanti-la, mas o faz muito mal. Qual sua função? Ser só "regulador", diz o neoliberalismo, mas, invertendo o sentido das palavras, como fazia o big brother de Aldous Huxley, a ideologia dominante advogou sempre a desregulação geral.

A confiança, portanto, não foi perdida apenas por motivos econômicos. Além de trazer a desregulação dos mercados, a hegemonia neoliberal trouxe consigo a deterioração dos padrões morais da sociedade. A virtude e o civismo foram esquecidos, senão ridicularizados, em nome de uma racionalidade econômica de mercado superior, que se pretendia legitimada por modelos econômicos matemáticos. Os bônus se transformaram no único incentivo legítimo ao trabalho. Os escândalos corporativos se multiplicaram. A prática de corromper servidores públicos e políticos generalizou-se. Estes, por sua vez, se adaptaram aos novos tempos, "confirmando" a tese fundamentalista de mercado do Estado mínimo. Ao invés de se pensar Estado como o grande instrumento de ação coletiva da sociedade, expressão da racionalidade institucional que cada sociedade alcança no seu respectivo estágio de desenvolvimento, e guardião legal da moralidade, passou-se a vê-lo como uma organização de funcionários e políticos corruptos. A partir desse reducionismo político, desmoralizava-se o Estado e sua lei, reduzia-se o papel dos valores e se estabelecia a permissibilidade favorável aos ganhos fáceis. Não foi por acaso que o livro publicado por John Kenneth Galbraith em 2004 chamou-se Economia das Fraudes Inocentes. Quando comparado com seu clássico, Capitalismo Americano: O Conceito das Forças Contrabalançadoras, de 1957, este último livro do grande economista, falecido pouco depois aos 95 anos, nos dá a medida da degradação dos padrões éticos dos últimos 30 anos.

*Economista, cientista político, três vezes ministro (no governo Sarney e nos dois mandatos de Fernando Henrique) e professor emérito da FGV desde 2005

exame/negócios



Está ruim... e pode piorar

A Usiminas enfrenta um dramático problema de motivação de seus funcionários - situação que se torna ainda mais difícil de ser resolvida com o impacto da crise econômica sobre o setor de aço
Leonardo Horta/Divulgação
Funcionários trabalham na limpeza de um alto-forno: paternalismo, falta de motivação e desconfiança
Por Malu Gaspar | 02.04.2009 | 18h23

Revista EXAME -

Um dos primeiros documentos que a nova diretora de recursos humanos da Usiminas, Denise Brum, recebeu ao assumir o cargo, em agosto, a deixou perplexa. O relatório, produzido por agentes de vigilância da empresa, continha os mais variados detalhes da vida de funcionários, de casamentos desfeitos a problemas no dia-a-dia da fábrica, passando por assuntos discutidos nas rodas regadas a cerveja nos bares após o expediente e fofocas em geral. Em pouco tempo, Denise descobriu que os tais relatórios - diários - eram uma prática antiga na Usiminas, marca registrada de uma cultura corporativa que ela tinha a missão de sepultar. "Chamei o pessoal e avisei que não queria mais aquele tipo de informação. Eu preciso disso para quê?", diz Denise. Mas, se abolir os relatórios da arapongagem interna foi fácil e rápido, a cada dia fica mais claro que mudar a cultura interna da Usiminas - marcada por paternalismo, desconfiança entre os funcionários e falta de motivação - será bem mais difícil. O principal motivo é a crise econômica global, que atingiu em cheio o mercado de aço. A Usiminas é a maior produtora de aços planos do Brasil e 23% da produção é direcionada para a indústria automobilística - um dos setores mais sensíveis à retração no crédito e no consumo. Desde que a crise eclodiu, em setembro, a missão do presidente da empresa, Marco Antônio Castello Branco, passou a ser administrar a contração da demanda, cortando metade da produção e demitindo funcionários. Ao mesmo tempo que demite e reduz a operação, ele precisa incutir motivação, dinamismo e espírito inovador em quase 30 000 funcionários. "Eu me sinto como o equilibrista de circo que tem de manter vários pratos rodando ao mesmo tempo", diz Castello Branco, de 48 anos, 24 passados na fabricante de tubos franco- alemã Vallourec & Mannesmann.

COM AS INFORMAÇÕES COLETADAS, revelou-se que a empresa tem um corpo de funcionários envelhecido (a idade média é 46 anos, quando o ideal seria 36), insatisfeito (apenas 32% consideram justos os critérios de avaliação de desempenho), impregnado pelo nepotismo (há três parentes para cada funcionário) e acuado pelo autoritarismo (55% não veem espaço para discordar de uma ordem do chefe imediato). Segundo os funcionários, na Usiminas faltam meritocracia, motivação, incentivo à inovação e troca de conhecimento (veja quadro ao lado), componentes essenciais para uma empresa que precisa promover uma virada estratégica de grandes proporções. Os resultados não são exatamente uma surpresa para Castello Branco. O que não estava no script eram as dificuldades que o novo time está encontrando. Um exemplo é a condução do processo de demissões. Até agora, 900 pessoas foram dispensadas, na primeira demissão em massa da história da Usiminas. Desde o início da crise, com cancelamento de encomendas e redução drástica nas exportações, a proporção da mão-de-obra nos custos subiu de 10% para 15%. A meta é voltar a 10%. Em janeiro, os gerentes foram orientados a dar prioridade, nas demissões, a aposentados que continuavam a trabalhar. Mas apenas 9% dos aposentados foram dispensados até fevereiro. "Há gestores que simplesmente não conseguem demitir. Alguns não entendem o porquê das demissões", diz Denise Brum, a diretora de RH.

O esforço para transformar a Usiminas é tal que, no momento, há nove consultorias trabalhando na empresa. Uma elabora um novo plano de salários e remuneração variável. Outra mapeia os talentos capazes de ser alocados em novas funções. Uma terceira se encarrega de ensinar o corpo gerencial a fazer mudanças no estilo de gestão. O investimento na remodelação da companhia é estimado em 25 milhões de reais, em dois anos. Os próprios consultores que atuam na empresa acreditam que a transformação vá levar mais tempo. "Não se faz uma mudança como essa em menos de quatro ou cinco anos", diz Betânia Tanure, professora da Fundação Dom Cabral, uma das envolvidas no processo. Para ela, a crise pode acabar ajudando no processo. "Pode ser uma boa oportunidade de aglutinar a companhia contra uma ameaça externa."

A REPERCUSSÃO DAS PRIMEIRAS iniciativas ainda é controversa. A diretoria acaba de registrar a primeira baixa, com a saída do vice-presidente de finanças, Paulo Penido, que foi um dos candidatos à sucessão de Soares. Penido foi um dos quatro vice-presidentes nomeados após a redução do número de executivos ligados ao presidente, de 18 para 11. Ao mesmo tempo, foi bem-vista a criação de um portal na internet para melhorar o nível de informações para conselheiros e acionistas, e o programa de sugestões sobre corte de custos teve 12 000 contribuições de funcionários. Na usina de Ipatinga, no interior de Minas Gerais, onde está a maior parte da operação, estão em curso dinâmicas de grupo com os operários sobre a mudança na cultura da empresa. É lá em Ipatinga que há mais resistência ao novo presidente. O sindicato dos metalúrgicos local avalia, pela primeira vez, a possibilidade de fazer uma greve. "A nova direção está assassinando nossos valores e impondo as coisas sem conversar", diz o presidente da entidade, Luiz Miranda. O ex-presidente da Usiminas Rinaldo Soares continua mantendo ligação estreita com os funcionários - ele ainda participa do conselho da empresa, como representante da caixa de previdência dos empregados. Procurado por EXAME, Soares não quis se pronunciar sobre o assunto.

Mesmo com as dificuldades iniciais, Castello Branco conta com o apoio dos acionistas da Usiminas. Trata-se de um grupo dividido em facções com interesses completamente diferentes, como os japoneses da Nippon Steel (que querem aumentar a participação em siderúrgicas no Ocidente), os grupos Votorantim e Camargo Corrêa (que têm outros negócios e vivem seus problemas internos) e os funcionários da própria Usiminas. Se, ao assumir, o executivo planejava marcar sua gestão com aquisições e investimentos para ampliar a produção, hoje o cenário é radicalmente diverso. A prioridade agora é cortar pelo menos 1,2 bilhão de reais em custos - e preparar-se para crescer quando a crise passar. "Neste momento, não há muito a fazer a não ser seguir esse receituário- padrão, cortando custos e melhorando eficiência", diz o analista de siderurgia do banco Brascan Rodrigo Ferraz. Executivo experimentado no setor, Castello Branco conhece a fórmula e sabe que o sucesso de sua trajetória na Usiminas depende de atravessar a tormenta sem criar problemas com os acionistas. Enquanto eles estiverem de bem, a revolução interna poderá seguir adiante, mesmo que isso aumente o azedume de parcela dos funcionários.